Jogos Panamericanos, em 2007; Rio+20, em 2012; Copa das Confederações e Jornada Mundial da Juventude, em 2013; Copa do Mundo, em 2014 e, por fim, Olimpíadas, em 2016. Como país sede de todos estes Megaeventos, o Brasil, e, principalmente a cidade do Rio de Janeiro, tornaram-se alvo do mercado de tecnologias de monitoramento e laboratório de mudanças no jurídico-institucionais rumo a maior vigilância e controle do fluxo de informações.
Tudo indica que o legado dessa série de eventos foi a construção de um sistema de vigilância cujo preço, eficiência e transparência é bastante questionável. Quem opera hoje esse sistema? Qual sua abrangência? De quais tecnologias dispõe? Existiu um balanço no sentido de assegurar também a privacidade e sigilo das comunicações? Quais são seus freios e contrapesos? Quais suas medidas de eficácia?
Este estudo pretende deixar tangíveis as mudanças na capacidades do Estado brasileiro para implementar diferentes formas de controle de informação, evidenciando-se as áreas de incerteza que dão margem para sérias violações de direitos humanos.
Para fins desta análise, consideramos como poderes de vigilância qualquer prática que implique em controle de informação, sejam elas: interceptação de comunicações; quebra de sigilo de comunicações armazenadas; acesso a dados cadastrais e outros tipos de dados; infiltração de agentes; monitoramento através de informações públicas e vigilância de rua (incluindo o uso de drones, bloqueadores ou IMSI catchers). Com base nesses poderes, focamos nos detalhes da expansão do arcabouço jurídico-institucional de vigilância no Brasil, mapeando que arranjos institucionais e novos atores emergiram ou se juntaram, bem como que outras mudanças na legislação ocorreram para ampliar esses poderes de vigilância desde o anúncio dos Jogos Panamericanos no Brasil.
Como sede de todos esses Megaeventos, o Brasil se tornou um mercado consumidor promissor aos olhos da indústria de vigilância e segurança pública global. Para escoar suas "soluções", que é como os vendedores chamam seus equipamentos, no mercado regional, a Indústria de vigilância investiu no lobby e se aproveitou, por um lado, do discurso do medo do terrorismo, que acompanha a realização de Megaeventos no mundo e, por outro, do forte apelo do conceito de Cidades Inteligentes, que viria para organizar o suposto caos das cidades latinoamericanas com sua "tecnologia de ponta". Além disso, o contexto brasileiro se mostrava bastante receptivo: com grande alocação de recursos para tudo que envolvesse os Megaeventos; um cenário político bastante corrupto, disposto a negociações rápidas, com propina e sem licitação; um contexto social em convulsão, com grandes manifestações e o forte apelo para monitorar e controlar movimentos sociais.
Os Centros Integrados de Comando e Controle, por exemplo, foram equipados com tecnologia da IBM, que, de acordo com matéria da Pública tentava vender seus produtos e o conceito de "cidades inteligentes" no Brasil desde 2010, logo após os anúncios de que todos esses Megaeventos aconteceriam no país. A empresa fez uma espécie de lobby ao apoiar um "road show" da Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas pelas cidades-sedes da Copa do Mundo, além de escalar seu gerente de novas tecnologias, Cezar Taurion, como articulista do Portal da Copa 2014.
Também não foi à toa que feiras de segurança pública e de equipamentos de inteligência passaram a ser sediadas no Brasil, ou ter como foco os Megaeventos. A TeleStrategies, por exemplo, empresa que promove conferências internacionais no segmento de sistemas de suporte à inteligência, iniciou, em 2011, um encontro voltado exclusivamente para o mercado latino americano. Sendo que entre 2011 e 2014, quatro encontros anuais foram sediados no Brasil. Em email-convite enviado à empresa italiana Hacking Team, a diretora de programas da ISS World (ISS significa Intelligence Support Systems) comenta a expectativa de um evento com um grande público, considerando que uma conferência sobre ISS nunca havia sido realizada na América Latina, e que o Brasil teria dois grandes eventos na agenda, a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos.
O ISS World Latin America é uma conferência em que empresas do mundo todo (Estados Unidos, países da Europa e Israel, principalmente) apresentam, treinam, demonstram e vendem seus equipamentos de vigilância para agências policiais e de inteligência da América Latina. O encontro é patrocinado pelas maiores empresas do ramo, o que demonstra o interesse delas no mercado regional. Entre as empresas patrocinadoras estão Hacking Team, Gamma International, Nice e Suntech/Verint. Já entre os expositores vale a pena destacar a Cellebrite, COBHAM, Dígitro e Thales.
Foi, possivelmente, através do ISS World Latin America, por exemplo, que a Hacking Team pôde difundir suas "soluções" no mercado nacional e se aproximar de autoridades brasileiras. A empresa é conhecida por desenvolver e vender ferramentas de vigilância para governos, ajudando instituições policiais a infectar dispositivos móveis e computadores e espionar cidadãos e cidadãs em todo o mundo. Fundada em 2003, a empresa afirma que seus sistemas "são desenhados para combater o crime e o terrorismo", no entanto, em 2015, foi alvo de críticas e diversas polêmicas após ter 400GB de documentos vazados (entre e-mails, listas de clientes, comprovantes de compra), revelando a venda de seus equipamentos para países com regimes repressores, como o Sudão. Entre os arquivos vazados há inúmeros e-mails para autoridades brasileiras comprovando que entre 2012 e 2013 a empresa fez uma verdadeira turnê por órgãos militares, de segurança pública e de inteligência do país. O primeiro contato com esses órgãos se dava, muitas vezes, na conferência. A empresa, inclusive, chegou a fazer um acordo-teste com a Polícia Federal, que, segundo é possível ler nos e-mails, usou, com ordem judicial, malwares da Hacking Team.
Após quatro anos de evento no Brasil, a TeleStrategies resolveu sediar o ISS World Latin America 2015 na Cidade do México, causando reações na sociedade civil local, que publicou uma carta aberta rechaçando o evento. De acordo com as organizações, apesar da conferência afirmar que atividades de vigilância devem ser realizadas com amparo legal, diversas tecnologias apresentadas no ISS World foram vendidas a governos repressores e foram usadas de maneira que violam direitos humanos.
Além da ISS World, outra feira de peso sediada no Brasil é a LAAD Defense & Security, que acontece desde 1995, mas que nos últimos anos teve como foco a preparação para os Megaeventos. Na feira é possível encontrar "soluções" para todos os tipos de medo: tráfico de drogas, terrorismo, cibercrime. Pouco se fala, no entanto, do impacto dessas tecnologias na sociedade e na garantia de direitos.
A maneira como essas tecnologias entram e o protagonismo que representam na operacionalização e organização da segurança pública extrapola a questão dos gastos e o mero fornecimento de serviços ou dispositivos. Nesse contexto, algumas empresas estrangeiras passam a se inserir na própria estrutura governamental, modelando, através de suas tecnologias, até mesmo o funcionamento do Estado. Como coloca o pesquisador Bruno de Vasconcelos Cardoso, "sua atuação não se dá por meio da ingerência direta nas políticas públicas, mas ocorre através da construção de canais de ação "desenhados" por essas empresas através de equipamentos e softwares que privilegiam (embora não determinem) formas de atuação das forças de segurança". Ainda de acordo com Cardoso, há um "padrão de mudanças nos protocolos e estratégias de ação que vem se repetindo em diversos contextos internacionais e que estariam associados a um modelo de "urbanismo militarizado" que também acompanha, ou que foi planejada para acompanhar, os preparativos para a realização dos Megaeventos".
Estimar os gastos com equipamentos de vigilância que foram feitos nesse período é uma tarefa árdua, principalmente porque os investimentos neste tipo de tecnologias raramente são atribuídos direta e claramente a esse tipo de equipamentos e serviços. Normalmente, as cifras se misturam com outros equipamentos de TI e outros gastos com segurança pública, ou são diluídos entre secretarias de segurança, órgãos de inteligência, polícias e outras instâncias governamentais que foram responsáveis pela segurança nessa sequência de Megaeventos. Mas, para que se tenha uma dimensão, de acordo com o Portal da Transparência, o total executado apenas com o Plano de Segurança para a Copa 2014 foi de R$1338 bilhões para "garantir a integração e articulação entre os órgãos de policiamento e defesa nas três esferas de governo", de acordo com o Portal da Transparência. No caso das Olimpíadas, em resposta à crise financeira do Estado do Rio de Janeiro — que chegou a decretar estado de calamidade pública — o governo federal assinou Medida Provisória repassando uma verba a fundo perdido no valor de 2,9 bilhõespara "auxiliar nas despesas com Segurança Pública" do Estado em razão dos Jogos. Segundo reportagem do El País, o valor representa mais de 43% do orçamento anual do Estado para a Saúde. Isso sem contar com os gastos anteriores.
Com estes e outros valores gastos, agora temos drones israelenses, centenas de câmeras com reconhecimento facial e até estranhos balões de vigilância, cada um com 13 câmeras de alta resolução. A utilização dessas tecnologias como legado positivo para a segurança pública no país, no entanto, é duvidosa.
O mercado da vigilância opera nos vendendo a "lógica do robocop", ou seja, a idéia de que se nos armarmos de tecnologia e inovação, a ponto de parecer ciborgues, será possível combater o crime com mais eficiência. Mas quanto dessa teoria é comprovada? Quão eficientes são todos esses gadgets? Todos os gastos feitos com eles, cujo total mal sabemos qual é, não seriam mais eficientes se aplicados em temas como promoção de emprego e educação?
Essas perguntas não são respondidas e raramente mensuradas no debate da segurança pública. Mas o fato é que, por exemplo, os Balões de vigilância, que custaram 5 milhões cada e, após as Olimpíadas foram doados pelo Ministério da Justiça à Guarda Municipal e à Polícia Militar do Rio de Janeiro, desde 2015 já não tinham previsão para utilização fora dos Megaeventos. Isso porque, com a crise, os balões que precisam de 80 metros cúbicos de gás Hélio para subir, o equivalente a R$ 40 mil reais, ficaram encalhados. E mesmo durante as Olimpíadas, o uso da tecnologia não foi bem sucedido: dos quatro balões comprados, um pegou fogo no ar, e o outro voou para longe, de acordo com reportagem do jornal O Dia.
O mesmo se aplica às câmeras de vigilância, chamadas de CCTV (closed-circuit television camera), que ultimamente também podem integrar análise de biometria, como o reconhecimento facial. Vários estudos colocam em cheque sua eficácia, ainda mais na América Latina (afinal, quantos crimes você já viu serem resolvidos por câmeras CCTV? Será que suas imagens têm sido utilizadas apenas para dar mais impacto nos programas sensacionalistas sobre violência urbana?). De acordo com a cientista política e jornalista Natália Zuazo, autora do livro "Guerras de internet", "o que se nota é que não existem grandes comprovações da relação entre câmeras e aumento da segurança. Na prática, o modelo de negócios dessa indústria se baseia em uma mistura lucrativa de marketing político e entretenimento, na maioria da vezes, financiado por dinheiro público". De fato, dados demonstram que nem para amedrontar ou causar constrangimento as câmeras tem servido muito. Como pode ser observado no Rio de Janeiro, apesar das 4200 câmeras usadas pela Secretaria de Segurança, e das mais de 700 mil câmeras privadas em casas, prédios e lojas (dados apurados pela Agência Pública), o número de roubos bateu recordes em 2017, com 12089 só em abril, o maior número desde 2002.
Mais de um ano depois do término das Olimpíadas, o último dos Megaeventos programados para a cidade do Rio, mesmo com todos estes investimentos em tecnologias, a violência urbana aumentou de maneira preocupante. Estudo denominado "Incidência de tiroteios e indicadores criminais na região metropolitana do Rio de Janeiro", feito pela Diretoria de Análise de Políticas Públicas da Fundação Getulio Vargas - FGV/DAPP e a equipe que desenvolveu e mantém o aplicativo e plataforma Fogo Cruzado, relata que "entre julho de 2016 e junho de 2017, o Fogo Cruzado identificou 5.345 tiroteios/disparos de arma de fogo na Região Metropolitana do Rio de Janeiro através de notificações de usuários da plataforma colaborativa, de notícias de imprensa e de boletins policiais. Foram mais de 14 tiroteios registrados por dia, em média, com cerca de 1.425 feridos e 1.349 mortos entre policiais e civis." O estudo também revela que, segundo dados do Instituto de Segurança Pública, a "Baixada Fluminense e a cidade do Rio de Janeiro registraram aumentos de 15% e 14%, respectivamente, nos registros de homicídios dolosos na comparação entre o primeiro semestre de 2017 com o primeiro semestre de 2016".
Esse aumento da violência urbana levou o Jornal Extra a anunciar a criação de uma "Editoria de Guerra do Rio". Existem críticas a respeito desse posicionamento, para uns, trata-se de uma banalização da palavra de maneira alinhada tanto com o discurso da polícia militar, como do governo federal, que, seja na figura do presidente Temer, ou do ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, Sérgio Westphalen Etchegoyen, utilizam o discurso de que existe uma "guerra" para legitimar a ação das Forças Armadas na cidade por tempo quase que indeterminado, por meio do último decreto de Garantia de Lei e Ordem. Seja qual for a resposta dada à implementação da terminologia "guerra", o fato é que a violência na cidade aumentou, mesmo com todos os investimentos em equipamentos de vigilância e gradual militarização do espaço urbano. Questiona-se, portanto, se mais militarização é a solução ou se não seria a causa de mais abusos e crimes.
A seguir, pretendemos analisar as mudanças legais que viabilizaram o início desse processo de urbanismo militarizado.
Novas institucionalidades foram criadas ampliando a capacidade de vigilância de diferentes atores no sistema de segurança pública e inteligência.
Para visualizar as mudanças, elaboramos uma linha do tempo reunindo as alterações no sistema jurídico-institucional que viabiliza práticas de vigilância e que foram aprovadas no espaço de tempo referente à série de Megaeventos. A linha do tempo já deixa evidente uma intensificação desse arcabouço institucional.
Além do Código Penal e Código de Processo Penal, até antes do anúncio dos Megaeventos, esse era, basicamente, o marco jurídico-institucional que viabilizava práticas de vigilância no país.
Em poucos anos, no entanto, percebe-se a complexificação do sistema.
O quadro abaixo resume, ainda, quais agentes têm competência para práticas de vigilância e controle de informação de acordo com a legislação vigente, e já demonstra também alguma expansão de seus poderes, em razão por exemplo, do Decreto da Anatel de 2016, que permite uso de bloqueadores de sinal em operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) e até mesmo determinações do Marco Civil (2014).
Alterações legais que dizem respeito ao processo de investigação também foram implementadas, nesse sentido, ressaltamos alterações na Lei de Organizações Criminosas, aprovação da Lei Antiterrorismo, detalhamento das Operações de Garantia da Lei e da Ordem, bem como aprovação de leis que viabilizam investigação nos meios digitais (como a guarda de logs do Marco Civil da Internet, a aprovação da lei de crimes cibernéticos, e a lei que trata de infiltração de agentes no meio digital).
Mas, além do aumento dos poderes de vigilancia, novas institucionalidades também foram criadas para respaldar a segurança pública desses Megaeventos. Observando a sessão da infografia que diz respeito apenas ao arranjo institucional, destaca-se a criação da Secretaria Extraordinária de Segurança para Grandes Eventos (SESGE/MJ), a construção e implementação dos Centros Integrados de Comando e Controle (CICC) e do Sistema Integrado de Comando e Controle (SICC), e a criação do CDCiber.
Destaque às novas institucionalidades criadas rapidamente logo depois do anúncio da Copa e das Olimpíadas
A seguir, detalhamos como algumas dessas mudanças contribuíram para a ampliação dos poderes do sistema de vigilância no país.
A maioria das mudanças institucionais dizem respeito a uma maior integração de bases de dados dos diferentes órgãos de segurança. Nesse sentido, considerando as experiências obtidas durante a Copa das Confederações em 2013 e a Jornada Mundial da Juventude, visando coordenar as ações de Segurança Pública durante Copa e Olimpíadas, em 2011, foi criada, sob o Ministério da Justiça, a Secretaria Extraordinária de Segurança para Grandes Eventos (SESGE/MJ). Entre suas ações destaca-se a função de elaborar propostas legislativas em conjunto com a Secretaria de Assuntos Legislativos; promover integração e re-aparelhamento dos Órgãos de Segurança Pública, Defesa, Inteligência, Defesa Civil e gerenciamento de trânsito; e ser a interface de ações na área, inclusive envolvendo organismos internacionais. Foi com a SESGE que foram estabelecidos vários acordos de cooperação para capacitação e treinamento de agentes. Segundo apuração da Pública, que recebeu uma lista da SESGE sobre capacitação feita em cooperação internacional, o "FBI e outras agências americanas treinaram 837 policiais das 12 cidades-sede em cursos diversos, que também incluem investigação digital e relacionamento com a mídia."
Para auxiliar as atribuições da SESGE, em 2012, foi criado Sistema Integrado de Comando e Controle (SICC), integrando todo o aparato estatal voltado para a Segurança Pública e Defesa Civil. De acordo com a Portaria nº 88, de 26 de março de 2014 que estrutura o SICC, visando a Copa do Mundo, o sistema integra os seguintes centros:
um Centro Integrado de Comando e Controle Nacional — CICCN, localizado em Brasília. É o centro estratégico das ações de segurança pública e defesa civil, que supervisiona e apóia as ações das cidades-sede e mantém atualizadas informações para o alto escalão do Governo Federal;
um Centro Integrado de Comando e Controle Nacional Alternativo — CICCNA: localizado no Rio de Janeiro
um Centro de Cooperação Policial Internacional, localizado em Brasília;
doze Centros Integrados de Comando e Controle Regionais — CICCR;
vinte e sete Centros Integrados de Comando e Controle Móveis — CICCM;
doze Centros Integrados de Comando e Controle Locais — CICCL
vinte e duas Plataformas de Observação Elevada — POE
Centros criados para formar o Sistema Integrado de Comando e Controle
Essa complexificação do sistema resultou em uma maior troca de dados entre os vários agentes públicos e privados que passaram a compor os Centro Integrados de Comando e Controle.
Nunca no país se havia estruturado um sistema que integrasse tantos órgãos públicos, sem quaisquer considerações de privacidade sobre o fluxo de dados que aconteceu entre todos as instituições públicas e privadas que constituíram esse Sistema de Comando e Controle. E o custo foi alto, de acordo com investigação da Agência Pública, a Secretaria Extraordinária de Segurança para Grandes Eventos (SESGE/MJ), teve seu maior gasto justamente na implementação dos CICCs, um total de R$637 milhões, sendo que o CICC do Rio de Janeiro custou 64,1 milhões, o mais caro de todos. Outro grande gasto da SESGE, de R$97 milhões, foi para os Centros Integrados de Comando e Controle Móveis (CICCMs).
Em relação a criação de leis, vale destacar a aprovação da nova Lei de Organizações Criminosas (Lei nº 12.850, de 2 de Agosto de 2013). A Lei, que altera o Código Penal e revoga a Lei nº 9.034/95, define o conceito de organização criminosa e dispõe sobre a investigação criminal e os meios de obtenção da prova. Embora sua aprovação não esteja diretamente ligada aos Megaeventos, ela foi implementada em meio às grandes manifestações de 2013, e é hoje um dos instrumentos mais poderosos para a vigilância e criminalização de movimentos sociais, grupos ativistas e dissidentes políticos.
A Lei prevê uma série de mecanismos de monitoramento e inteligência como meios de obtenção de prova. Os mecanismos são os seguintes: colaboração premiada; captação ambiental de sinais eletromagnéticos, ópticos ou acústicos; ação controlada; acesso a registros de ligações telefônicas e telemáticas, a dados cadastrais constantes de bancos de dados públicos ou privados e a informações eleitorais ou comerciais; interceptação de comunicações telefônicas e telemáticas, nos termos da legislação específica; afastamento dos sigilos financeiro, bancário e fiscal, nos termos da legislação específica; infiltração, por policiais, em atividade de investigação; cooperação entre instituições e órgãos federais, distritais, estaduais e municipais na busca de provas e informações de interesse da investigação ou da instrução criminal.
Além disso, em 2015, foi aprovada a Lei 13097 que altera a Lei de Organizações Criminosas e no seu artigo 158 dispensa a necessidade de licitação em caso de "contratação de serviços técnicos especializados, aquisição ou locação de equipamentos destinados à polícia judiciária para o rastreamento e obtenção de provas" a serem obtidas por meio de "captação ambiental de sinais eletromagnéticos, ópticos ou acústicos"; e "interceptação de comunicações telefônicas e telemáticas", desde que haja necessidade justificada de manter sigilo sobre a capacidade investigatória. A Lei também prevê a dispensa de publicação na imprensa oficial do resumo das contratações e aditamentos de dispensa de licitação. Portanto, torna ainda mais difícil o controle social sobre esse tipo de gasto, cada vez menos transparente.
Foi a inclusão desse artigo que parece ter possibilitado a venda de malwares da empresa italiana de vigilância Hacking Team para a Polícia Federal. De acordo com e-mails da empresa que foram vazados em 2015, as negociações com a PF só caminharam após a mudança na legislação.
Outra lei preocupante em relação à sua utilização para criminalizar movimentos sociais é a Lei nº 13.260, que tipifica terrorismo. Sancionada em março de 2016, a provação da lei se deu sob um contexto de muita pressão internacional, com apoio do G20 e, extra-oficialmente, de acordo com o El País, do Comitê Olímpico Internacional, que exigiam o cumprimento de um acordo firmado com o Grupo de Ação Financeira (GAFI), e maior segurança legal para lidar com eventuais problemas na realização dos Jogos Olímpicos. Além disso, o contexto era de turbulência social: desde 2013 o país vinha sendo sacudido por grandes manifestações e, naquele momento, estava diante de um aprofundamento da crise política e econômica, com movimentos pró e contra o impeachment da presidenta Dilma, manifestações de alunos secundaristas contra o fechamento de escolas, e movimentos contra o ajuste fiscal.
Apesar do tema ser de difícil consenso e de exigir amplo debate social, a proposta teve tramitação rápida no Congresso, sendo aprovada em não mais que 9 meses. Durante toda a tramitação, no entanto, foi duramente criticada por parte da sociedade civil brasileira e, inclusive, pela Organização das Nações Unidas (ONU). As principais críticas dizem respeito ao caráter genérico do texto, que pode dar margem a interpretações distorcidas; ao fato de que a lei estipula penas muito severas; e ao fato de que as ações contidas na Lei já possuem tipificação legal no Brasil.
Em pronunciamento realizado em novembro de 2015, após o projeto ser aprovado no Senado, quatro relatores da ONU se disseram preocupados com a definição contida no texto, que poderia "resultar em ambiguidade e confusão na determinação do que o Estado considera como crime de terrorismo, potencialmente prejudicando o exercício dos direitos humanos e das liberdades fundamentais".
Na Câmara dos Deputados o projeto chegou a ser alterado antes de ser aprovado, excluindo "extremismo político" como caracterização de terrorismo e incluindo no Art. 2 a ressalva de que a Lei não se aplicaria à "conduta individual ou coletiva de pessoas em manifestações políticas, movimentos sociais, sindicais, religiosos, de classe ou de categoria profissional, direcionados por propósitos sociais ou reivindicatórios, visando a contestar, criticar, protestar ou apoiar, com o objetivo de defender direitos, garantias e liberdades constitucionais". Para a Anistia Internacional, no entanto, o texto não protege os movimentos, e, de acordo com nota pública da instituição, na "conjuntura brasileira em que leis totalmente inadequadas ao contexto de protestos (como a Lei de Segurança Nacional e a Lei 12.850/2013 sobre organizações criminosas) foram usadas na tentativa de criminalizar manifestantes em protestos desde 2013, é muito grave a aprovação de um projeto de lei "antiterror" que poderá aprofundar ainda mais o contexto de criminalização do protesto em geral". Já para Rafael Custódio, da ONG Conectas, "Se um manifestante for detido em um protesto e indiciado por ato de terrorismo ele terá de provar que é inocente durante o processo. Essa salvaguarda prevista no projeto, na prática, não resultará em nada. Até o fim da ação ele será visto como um terrorista, não como um ativista social, por exemplo".
Agora, o Projeto de Lei 5.065 de 2016, proposto pelo deputado Delegado Edson Moreira (PR-MG), ameaça tornar a Lei ainda mais perigosa para movimentos sociais e grupos dissidentes. O Projeto pretende reinserir no texto "motivação ideológica, política, social e criminal" como motivações que podem caracterizar uma prática terrorista. Além disso, pretende revogar o § 2º, do artigo 2º, exatamente o que exclui de enquadramento "manifestações políticas, movimentos sociais, sindicais, religiosos, de classe ou de categoria profissional".
A série de Megaeventos foi também marcada pelo emprego das Forças Armadas na segurança pública
Além dessas novas previsões legais, a realização da série de MegaEventos foi também marcada pelo emprego das Forças Armadas na segurança pública através de diversas operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO). Prevista no artigo 142 da Constituição Federal, e regulamentada pela Lei Complementar 97, de 1999, e pelo Decreto 3897, de 2001, operações GLO devem ser estabelecidas por decisão de Presidente da República, podendo partir de iniciativa própria ou por pedidos de outras autoridades, e em momentos em que as forças de segurança forem insuficientes para garantir "a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio". Ou seja, quando o policiamento ostensivo feito pela Polícia Militar não for suficiente, o Exército, a Marinha e a Aeronáutica podem ser chamados às ruas para reforçar a segurança.
Segundo resposta de pedido de acesso à informação feito pela Coding Rights ao Ministério da Defesa, de abril de 2000 à maio de 2017, foram realizadas 91 operações de garantia da Lei e da Ordem. Destaca-se aqui as Operações GLO que aconteceram durante a Rio + 20, em junho de 2012; na Copa das Confederações, em junho de 2013; na Jornada Mundial da Juventude e visita do Papa Francisco, em julho de 2013; no sorteio dos jogos da Copa do Mundo, em fevereiro de 2014; durante a Copa do Mundo, em maio de 2014; e nos Jogos Olímpicos e Paralímpicos, em 2016. Mas o caso mais significativo talvez seja a ocupação militar do conjunto de favelas da Maré, no Rio de Janeiro, em preparação para a Copa do Mundo. Apesar do Decreto 3892 prever que o emprego das Forças Armadas nessa situação deve ser "episódico" e ter a "menor duração possível", a ocupação durou mais de um ano, começando em 5 de abril de 2014, até o dia 30 de junho de 2015. Além disso, a operação, que envolveu cerca de 3.000 militares fortemente armados e o uso de blindados da Marinha, fez a região parecer um campo de guerra, e chegou a custar R$1,7 milhão de reais por dia.
A ocupação também causou graves violações de direitos. Em fevereiro de 2015, um carro com cinco amigos que voltavam para casa foi fuzilado na entrada da favela Salsa e Merengue. Um dos ocupantes do carro, Vitor Santiago Borges, foi atingido gravemente e ficou paraplégico, após passar por um período de coma. Os outros 4 amigos chegaram a ser detidos por desacato logo após o fuzilamento. Um ano depois do ocorrido, Vitor permanecia sem qualquer assistência do Governo, e a Ponte Jornalismo chegou a apurar que o Ministério Público Militar nem sequer havia aberto inquérito. Outro exemplo são os processos contra civis movidos pela justiça militar. De acordo com levantamento feito pela ONG Justiça Global e pelo DIA, durante a ocupação militar na Maré, 39 processos foram movidos contra 42 civis. De acordo com Sandra Carvalho, da Justiça Global: "verificamos uma intensificação da atuação das Forças Armadas no cotidiano, realizando tarefas atípicas de sua função, como nas favelas. A consequência dessa atuação é o crescimento expressivo do número de civis processados e julgados por tribunais militares, mais comumente por desacato. Muitos deles são frutos da arbitrariedade e violações".
Em 2013, o Ministério da Defesa publicou o Manual de Garantia da Lei e da Ordem, elaborado pelo Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas (EMCFA). O manual é uma compilação das normas existentes sobre o assunto com o intuito de padronizar os procedimentos entre as Forças Armadas, e de acordo com o então Ministro Celso Amorim, ele deveria dizer "o que a pessoa na ponta da linha deve fazer. Ela precisa de instrução para agir rápido. Tem que saber a quem se reportar. O Manual é para isso". A primeira versão do texto, no entanto, incluía "grupos ou organizações" como "forças oponentes", ao lado de organizações criminosas e quadrilhas. Entre as principais ameaças listadas na primeira versão estão: bloqueio de vias públicas de circulação; depredação do patrimônio público e privado; invasão de propriedades e instalações rurais ou urbanas, públicas ou privadas; paralisação de atividades produtivas; paralisação de serviços críticos ou essenciais à população ou a setores produtivos do País. Situações questionáveis para emprego de todo o poder das Forças Armadas. O texto também prevê o emprego de técnicas de inteligência de maneira vaga e capaz de enquadrar como alvos movimentos sociais.
O modelo de plano operacional, anexo ao manual, prevê, ainda, a realização de "Medidas de Ataque Eletrônico". De acordo com o texto, "caso ações repressivas venham a ser desencadeadas, os meios de Guerra Eletrônica deverão ser empregados prioritariamente para interferência, de modo a silenciar os meios de comunicações das Forças Oponentes, especialmente telefones celulares e rádios".
O curioso é que foi só em 2016 que a Anatel publicou resolução autorizando o uso de Bloqueadores de Sinais de Radiocomunicações (BSR's) pelas Forças Armadas durante a realização dos "Jogos Olímpicos e Paralímpicos Rio 2016, em eventos-teste e subordinados, a eles associados, bem como em Operações de Garantia da Lei e da Ordem". Em todo caso, mais um legado: passado os Megaeventos, fica oficialmente autorizado o uso desses equipamentos em operações GLO. Algo preocupante quando se leva em consideração a intensificação do grande número de solicitações e o aumento no tempo de duração das operações desde 2010 (vide infográfico que tomou como base dados obtidos através da Lei de Acesso à Informação). E mais preocupante ainda se pensarmos que a implementação dessas Operações ocorre principalmente em favelas, áreas de conflitos de terra envolvendo indígenas e em manifestações. A utilização de bloqueadores em situações como essas podem violar o direito à liberdade de expressão, o direito à manifestação e dificultar o registro e divulgação de eventuais violações cometidas contra manifestantes.
Este ano, após Michel Temer autorizar o emprego de GLO para reprimir manifestação em Brasília, muito se debateu sobre a utilização desse tipo de recurso contra protestos e movimentos sociais. A prática, no entanto, não é uma novidade. A mesma resposta do Ministério da Defesa à nosso pedido de LAI comprova,por exemplo, o emprego das forças armadas durante o leilão do campo de Libra, em 2013, para impedir que manifestantes se aproximasse do local. Outro exemplo é a Operação Tucuruí, de maio de 2007, quando uma GLO foi montada após a ocupação da Usina Hidrelétrica de Tucuruí, no Pará, pelo Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), MST e Via Campesina.
Como disse o Presidente Michel Temer, a Garantia da Lei e da Ordem "está muito na moda". Tanto que, apesar do comandante do Exército, general Eduardo Dias da Costa Villas Bôas, afirmar, em audiência pública em junho deste ano, que o uso de militares em atividades de segurança pública é "desgastante, perigoso e inócuo", Temer assinou decreto que leva militares de volta para as ruas do Rio de Janeiro até dezembro.
Ainda que a Lei Antiterrorismo tenha gerado temor na sociedade brasileira pelo forte potencial para criminalizar movimentos sociais, na prática, porém, a lei que vem cumprindo esse papel é a Lei de Organizações Criminosas.
Logo após a Lei ser sancionada, no segundo semestre de 2013, em meio a grandes manifestações de profissionais de educação do Rio de janeiro, a Polícia Civil chegou a declarar, de acordo com matéria do jornal Estado de S. Paulo, que manifestantes detidos praticando atos de vandalismo seriam enquadrados na nova lei. Dias depois, em novo protesto de professores no centro do Rio, 27 pessoas foram autuadas por crime organizado. Grande parte delas foi detida de forma arbitrária, enquanto se reuniam, sentadas e de forma pacífica, na escadaria da Câmara dos Vereadores, após o protesto.
Mesmo movimentos sociais de peso e com uma longa história de luta no Brasil vem sendo criminalizados a partir da Lei de Organizações Criminosas. É o caso do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).
Em 2016, integrantes do MST passaram a ser investigados e dois chegaram a ser presos, com base na Lei, após denúncia do Ministério Público. Como desdobramento da mesma operação, em novembro de 2016, foram expedidos 14 mandados de prisão preventiva, outros 10 de busca e apreensão e ainda dois de condução coercitiva contra integrantes do Movimento no Paraná, em Mato Grosso do Sul e em São Paulo. Na ocasião, a Escola Nacional Florestan Fernandes, importante centro de educação e formação da militância do MST, foi invadida por policiais armados, sem ordem judicial.
Quando a Lei passa a ser utilizada como instrumento de criminalização, tais mecanismos se mostram ainda mais danosos. No caso do MST, ainda que a investigação esteja voltada a um grupo de pessoas, todo o Movimento pode estar sob vigilância, podendo ter, por exemplo, comunicações telefônicas e online interceptadas e agentes infiltrados.
Entre 2013 e 2014, após os protestos contra o aumento da passagem de ônibus, contra a Copa das Confederações e Megaeventos, e os protestos que se desenrolaram a partir da greve dos profissionais de educação, diversos ativistas do Rio de Janeiro passaram a ser alvo de um inquérito policial movido pela Delegacia de Repressão aos Crimes Informáticos (DRCI), que culminou com a prisão de 23 pessoas por associação criminosa (Art. 288 do Código Penal brasileiro, que foi alterado pela Lei 12.850, de 2 de agosto de 2013). Com mais de 2 mil páginas, entre depoimentos, transcrição de escutas telefônicas e prints de redes sociais, o processo é uma peça chave para entender como se dá a criminalização e monitoramento de movimentos políticos no Brasil.
Grande parte do processo está baseado em relatórios de procedimentos de "ronda virtual", nome que a polícia dá ao monitoramento de informações públicas em redes sociais (OSINT - Open Source Intelligence). A prática foi usada na investigação para construir uma narrativa quase romanesca, em que ativistas e manifestantes são apresentados como criminosos em grande parte por suas interações no Facebook. Análise de perfis, redes de amizade, likes, tags em fotos e comentários aparecem como prints no inquérito, e são costurados na narrativa de forma a respaldar denúncias e apontar lideranças. Além disso, o monitoramento também foi feito no sentido de coletar informações como número de telefones, localização, locais de trabalho, de moradia, profissão, e para traçar o perfil das pessoas investigadas.
Além das "rondas virtuais", a polícia também pediu à operadoras de telefonia a interceptação telefônica de mais de 40 linhas, inclusive de mães e parentes das pessoas suspeitas, e de celulares e do telefone fixo do Instituto de Defensores de Direitos Humanos (DDH), que presta assessoria jurídica gratuita à manifestantes. No processo há a tentativa de criminalização do Instituto, apontado pela polícia como "espécie de nave-mãe que recepciona e apoia as ações" das pessoas e grupos denunciados. O texto ainda coloca advogados do DDH como "militantes políticos ideologicamente alinhados com ações extremadas", e incorpora várias fotos dos profissionais em reuniões e manifestações, além de prints de perfis e atividades no Facebook.
Em conjunto com as interceptações telefônicas (grampo), também foram expedidas ordens judiciais para empresas de telefonia para fornecimento de dados cadastrais e conta reversa de diversos números e possíveis interlocutores; os IMEIS dos aparelhos relacionados às linhas; o fornecimento em tempo real da localização (AUDIT/ERBs, AZIMUTEs, RAIOS MÉDIOS) dos telefones investigados e de todos os números que entrassem em contato com eles. Há também solicitações para que as operadoras informassem sobre a possibilidade de acionar o GPS dos telefones interceptados, e o fizessem imediatamente em caso positivo; que não bloqueassem ou cancelassem as linhas interceptadas, independente do pagamento das contas; que sempre que solicitado pelas autoridades policiais, as operadoras enviassem torpedos sms contendo promoções, de modo a identificar a localização dos aparelhos monitorados; que as operadoras permitisse à autoridade policial o acesso direto a área técnica da empresa responsável pelas interceptações, ou que fornecessem o número de celular dos responsáveis técnicos, visando o pronto atendimento em caso de emergência.
Ainda consta no processo ordem judicial enviada ao Facebook para a "quebra de sigilo integral" de ao menos 30 perfis e 19 páginas ou grupos, com dados cadastrais (logs de criação e acesso com data, hora, IP, emails, telefones e cartões de crédito); comunicações de mensagens (texto, imagens, arquivos, áudios, localização), em tempo real, "mediante a criação de contas de espelhamento"; e preservação dos dados de todas as contas citadas pelo prazo de 90 dias. Através da análise do processo, não foi possível confirmar se a empresa entregou os dados, e a polícia chega a mencionar a "relutância e procrastinação" do Facebook em atender ordens judiciais desse tipo.
O que chama a atenção em relação ao Facebook é o pedido de espelhamento de contas, o que daria acesso, em tempo real, a todas as atividades que uma pessoa realiza em seu perfil: likes, comentários, postagens. A interceptação do fluxo de comunicações em sistemas de informática e telemática está prevista na Lei nº 9.296/96, mas não fica claro, no processo, o que seria esse "espelhamento": a polícia teria controle sobre o perfil e poderia fazer postagens, iniciar ou interagir com conversas de chat, comentar e dar like em postagens, adicionar outros perfis? Preocupa aí a vasta possibilidade de violações, como o acesso à comunicações antigas, fora do prazo da ordem judicial, e a possível falsificação e implante de provas, por exemplo.
Também não fica claro no processo se aplicativos de mensagens instantâneas foram alvo das investigações, uma vez que no relatório de quebra de sigilo telefônico consta que várias pessoas investigadas solicitaram códigos de acesso aos aplicativo Telegram e WhatsApp, e tiveram o SMS com o código interceptado pela polícia. Outro caso parecido foi o de um ativista que passou a senha do seu perfil de Facebook por conversa telefônica enquanto sua linha estava sendo interceptada. Nesse caso, outra violação poderia acontecer, como o acesso ao perfil do Facebook, WhatsApp e Telegram de forma ilegal, sem ordem judicial.
Além de todo o aparato de vigilância já mencionado, a investigação contou ainda com o depoimento de um Sargento da Polícia Militar do Distrito Federal integrante da Força Nacional. Maurício Alves da Silva conta em seu depoimento que atuava como "observador" das manifestações desde março de 2014, quando chegou ao Rio com o objetivo de coletar dados para subsidiar a atuação da Força Nacional na Copa do Mundo. Na verdade, mais que um observador, o Sargento agia como um infiltrado. Começou fazendo streaming das manifestações usando o aplicativo twitcasting, e repassando ao vivo para o Centro Integrado de Comando e Controle (CICC), informações sobre a identidade dos manifestantes, ações durante a manifestação, localização e possíveis lideranças. De acordo com o depoimento, o CICC teria tomado decisões "baseadas, em parte, pelas transmissões ao vivo feitas pelo declarante." Por ter sido abordado e questionado por manifestantes diversas vezes nos atos, Maurício passou a usar, como diz em depoimento, uma história cobertura: era um estudante de gestão pública que frequentava os atos para fazer pesquisa de campo para seu trabalho de conclusão de curso. Ao ganhar confiança dos manifestantes, ele passou a frequentar bares, festas e até um grupo fechado no Telegram. De acordo com reportagem da Agência Pública, o Sargento teria chegado, inclusive, a manter relacionamentos com ativistas.
Questionado pela defesa dos acusados, o Sargento afirma, em novo testemunho, que foi até a delegacia prestar depoimento por ordem de seu comandante, e que não sabia "se havia autorização judicial específica para sua missão". Além disso, Maurício confirma a infiltração de outros agentes de inteligência, e que, em quatro meses e meio de atuação, chegou a produzir diversos relatórios de inteligência.
O argumento acatado pelo Desembargador Siro Darlan para respaldar legalmente a ação do Sargento, foi o de que não houve infiltração, mas "a coleta de informações, por parte do retromencionado policial, em lugares abertos ao público, vale dizer, durante atos em que a presença de qualquer pessoa era permitida, não tendo havido necessidade de o aludido policial se fazer passar por membro de qualquer um dos grupos criminosos investigados".
Outro fato bastante alarmante na investigação é a utilização de uma conta de email do Google para receber dados sigilosos. Nas ordens judiciais consta que a entrega de informações como dados pessoais, quebra de sigilo e interceptação telemática (senha das contas espelho do Facebook), e informações relativas à interceptação telefônica, por exemplo, deveriam ser encaminhadas para as autoridades através do email opfirewall@gmail.com.
Outro caso importante envolvendo infiltração, e com desdobramentos parecidos com o dos "23 da Copa", é o Caso Balta Nunes, que aconteceu em São Paulo e culminou com a prisão de 21 pessoas, em setembro de 2016. Willian Pina Botelho, capitão de inteligência do Exército, se infiltrou em movimentos de esquerda na cidade de São Paulo e ajudou a Polícia Militar a preparar uma mega operação, com ônibus, helicóptero e diversas viaturas, para prender um grupo de jovens manifestantes quando se preparavam para ir a um protesto contra Michel Temer e o Impeachment de Dilma Rousseff.
O tamanho da operação e o fato de Botelho não ter sido preso junto com o grupo, chamou a atenção dos jovens, que o identificaram como um possível infiltrado. Botelho, então, finalizou suas atividades, apagou seus perfis nas redes sociais e anunciou para algumas pessoas o seu afastamento dos grupos. Mas sua tática não o salvou de ser exposto. Uma reportagem da Ponte Jornalismo revelou a infiltração e as táticas do capitão, que utilizava redes sociais e até o aplicativo de paquera Tinder, como ferramenta para se infiltrar entre ativistas. Foi, inclusive, através de uma paquera que Botelho teve acesso ao grupo de manifestantes, que se organizavam pelo WhatsApp.
Com a exposição na mídia, diversas investigações foram abertas para apurar o caso: uma do Exército (Comando Militar do Sudeste), uma da Procuradoria de Justiça Militar, uma do Ministério Público Estadual de São Paulo, e duas do Ministério Público Federal. Dessas, duas foram arquivadas, a do Exército e a da Procuradoria de Justiça Militar, que consideraram a ação legal. De acordo com esses órgãos, a atuação do capitão Botelho não se caracterizou como uma ação de infiltração, mas uma "atividade de observação de Inteligência, com o emprego das técnicas operacionais correspondentes", prevista em operações de Garantia da Lei e da Ordem. Ou seja, as ações do capitão foram julgadas legais a partir do entendimento de que ele estaria atuando, com funções de inteligência, na operação GLO ligada à passagem da tocha Paralímpica por São Paulo, no dia 4 de setembro, mesmo dia da manifestação e das prisões.
De fato, um decreto governamental publicado em 2016 possibilitava a implementação de operações GLO para garantir a realização de eventos Olímpicos e Paralímpicos. No entanto, o que o Exército e a Procuradoria da Justiça Militar ignoraram é que o capitão já estaria infiltrado muito antes do decreto, já que o perfil de Balta Nunes no Facebook foi criado em dezembro de 2014, de acordo com reportagem da Ponte Jornalismo. Outro fato ignorado por essas investigações é que o Governo de São Paulo afirmou não ter solicitado ajuda das Forças Armadas para a passagem da tocha.
O caso Balta é significativo. Ele revela, por uma lado, a utilização da GLO como pano de fundo para utilização de agentes das Forças Armadas para monitoramento de grupos ativistas e movimentos sociais, ainda que sob a alegação (cada vez mais recorrente) de que não se trata de infiltração, mas da "atividade de observação de Inteligência", como no caso dos "23 da Copa". Por outro lado, o caso revela que essa prática de vigilância se dá também na Internet, através de redes sociais e chats, o que a torna, talvez, mais difícil de ser "enquadrada" como infiltração, menos arriscada e, portanto, cada vez mais difundida.